quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

JOSÉ LINS DO REGO

A DOCE AMARGURA DO FINAL DE UM CICLO
BANGUÊ: A ESTÉTICA DO OCASO
DOUGLAS MENEZES

A linguagem telúrica, o conteúdo melancólico, a tristeza que paira em cada página que circunda os personagens, o apocalipse de um ciclo socioeconômico que aprofundou o capitalismo dependente do início do século vinte e aumentou a miséria do camponês, levando à falência centenas de senhores de engenhos na zona canavieira nordestina. Este o universo do escritor paraibano. Triste como o povo. Sofrido como o povo. Arte simbolizando decadência. A doce amargura do final de um período.

José Lins do Rego não só no enredo, mas na ênfase às paisagens, na formação dos personagens, buscou, na obra Banguê, evidenciar, em tudo, a dolorosa transformação das pequenas fábricas de açúcar em poderosas usinas, afirmando o capitalismo e tornando o povo mais miserável.

Analisar esse romance é também vislumbrar um painel histórico e viajar por uma época poética, fazendo-nos sentir o gosto do mel, o cheiro do açúcar, mesmo que esse cheiro e gosto sejam amargos para a gente sofrida, para aqueles que preferiam viver como escravos, porque as máquinas das usinas lhes tiraram tudo, até mesmo o “pirão” dado de esmola pelos donos de engenho.

Estudar a arte da decadência em Banguê, é fazer uma reflexão, que embora passadista, nos faz pensar no tempo de hoje. Tempo ainda escuro, injusto, concentrador de renda. Um tempo que precisamos contar e cantar com isenção, trazendo a marca de que ser omisso, é concordar com o sofrimento de uma gente que padece há mais de quinhentos anos.

Esse livro não vai morrer tão cedo, pois é vivo enquanto história e enquanto houver gente com fome. Nele, a beleza no aparente feio; a fealdade no belo apenas para os olhos.


                                           Engenho de José Lins


A doce amargura do final de um ciclo. Juntos, em sua obra, a memória e a ficção. A conotação que serve à sociologia. A transfiguração do real é, na verdade, o suporte para que entendamos sua voz. Entendamos essa realidade tão viva que ora é tratada como sociologia, ora é a mais pura ficção, cuja literariedade está, justamente, em tecer uma linguagem aproximada do tempo e espaço onde sua obra é produzida.

Injusto dizer do paraibano ser ele apenas um memorialista, um menino de engenho relaxado em relação ao ofício de ficcionista. Certo dizer que em sua obra a memória é constante. Em tudo o que se escreve há um pouco da vida do artista. Pode-se mesmo constatar: em seus livro há muito do que ele viveu, notadamente na infância. Mas inegável, também, é confirmar que O livro nos aproxima da visão de uma estética da decadência: Banguê. Nele, o tratamento dado é de uma linguagem que combina com a intenção maior: explicitar o momento decadente da zona canavieira nordestina. E mais ainda, vislumbrar a perplexidade do povo, vítima de uma fatalidade que dura séculos. Explica-se o fator econômico de forma extremamente literária. Literatura, nada mais que isso: entender a economia de uma região e de um ciclo de uma forma figurada, com personagens bem delineados, e alguns até com densidade psicológica. Injusto encontrar o autor nessa obra. A não ser no cenário vivenciado por ele na infância. Banguê é obra de ficção madura, sensível, dentro do espírito do Regionalismo Moderno, notadamente no discurso oral da linguagem, que nos aproxima da fala do homem comum. O livro, uma música. A sinfonia do melancólico. Um canto que nos faz sentir o cheiro da cana, o doce do melaço, o gosto sensível dos frutos daqui. E que, ao mesmo tempo, nos traz o aroma de suor do pobre homem do eito.

O odor acre do sangue derramado, daqueles que fazem a riqueza dos outros e não têm nada. O perfume nauseabundo das crianças amarelas e famintas, sujas no corpo, exalando a diarreia que a fome e os vermes entranharam em suas vidas; elas limpas na alma, essas crianças, porém.

A verdade é que, em Banguê , a tristeza é a tônica. O autor, obcecado em fixar a decadência de um período, deu unidade temática ao romance. O desânimo contagia a obra. Desânimo intencional que não tira o vigor do livro. Os seres principais envolvidos no enredo evidenciam a postura ideológica de José Lins do Rego. , Carlos Melo, José Paulino, entre outros, são agentes sociais, são a fala do autor, são os pensamentos vivos de quem nasceu e viveu grande parte da existência naquele mundo regional, tão particular, mas, porque as dores do homem estão em todo canto, ao mesmo tempo universal. Miseráveis e injustiçados são vítimas em qualquer lugar do mundo.

Há de observar-se no romance além do aspecto triste, o lado telúrico, inconfundível, e o colorido que dá movimento à tristeza da história, além de um brasileirismo calcado na paisagem canavieira, no monótono arrastado do carro-de-boi, no “banzo” presente em tudo. Isto fez o crítico Otto Maria Carpeaux afirmar: “José Lins é brasileiríssimo. Grande Literatura. São os seus romances um grande momento. Os historiadores do futuro aproveitar-se-ão desse documento para reconstruir todo um mundo. Essa obra não morre tão cedo. É eternamente triste como o povo. É o trovador trágico da província”.

O bafejo de morte que ronda o livro nos leva a um mundo que, ao contrário, é só vida. Isto porque o fatalismo ali encontrado nos remete à luta instintiva pela sobrevivência. Locomovem-se, os personagens, mesmo caminhando para um final anunciado, para um futuro de aniquilamento.

O que entendemos, então, é que a estética da decadência só foi possível ser evidenciada por conta da espontaneidade da linguagem, sem a qual o mundo expresso perderia sua autenticidade. Por isso, a obra de José Lins do Rego é vista como algo instintivo, natural, fluente, melancólico, triste, saudoso, passadista, poético. E Otto Maria, em um prefácio de Fogo Morto, vem colocar foros de verdade no que dissemos até agora: “A obra de José Lins é ele mesmo. É profundamente triste. É uma epopeia da tristeza, da tristeza da sua terra e da sua gente, da tristeza do Brasil. Na tremenda saúde física de José Lins do Rego há a consciência desesperada de todas as doenças possíveis e da morte certa. Há na sua obra a consciência de que tudo está condenado a adoecer, a morrer, a apodrecer. Há a certeza da decadência dos seus engenhos e dos seus avós, de toda essa gente que produziu, como último produto, o homem engraçado e triste que lhe erigiu o monumento. É grande Literatura”.

Um outro aspecto em Banguê, que facilita a compreensão da intencionalidade do autor em fixar o mundo decadente dos engenhos ou o fim desse mundo, é o fato do escritor ser um contador de histórias, um dos últimos. A linearidade de sua narrativa está em extinção. Hoje se busca um texto mais complexo e introspectivo. É como se o seu modo de contar morresse com os engenhos e a derrocada dos personagens.

A visão de decadência, no entanto, nos aparece nítida nos personagens marcantes no romance. É tese confirmada. São eles, os seres criados e evocados que completam o conjunto final de um ciclo. Em Banguê, dois deles sintetizam o tom sepulcral. A hora da morte, o lutar em vão pela continuidade do que está irremediavelmente perdido. José Paulino é o patriarca do final dos tempos. Os banguês tragados pelas usinas, mecanizadas, trazendo o progresso e o desemprego para milhares de camponeses semiescravos, mas, ainda assim, com seu pedaço de terra do engenho para plantar o que comer. Sintomático, logo no inicio da história, a constatação do personagem-narrador Carlos Melo, como uma cortina se abrindo, desnudando uma realidade sem fantasia, sem romantismo, doce amargura: “ O meu avô passava no quarto sem olhar. Na mesa não tinha mais aquela alegria de outrora. Falava da seca, do algodão em baixa, tudo o que não me interessava de perto”.

Deprimente Carlos Melo na confissão exageradamente humana. Poeticamente humana. Sensivelmente humana. Tão a gosto de José Lins do Rego: “ Ele era tudo para mim. Amava-o imensamente, sem ele saber. Via a sua caminhada para a morte, sentindo que todo o Santa Rosa desaparecia com ele”. E a frase que é uma sentença: “ Começava a sentir a decadência do meu avô”.

E como todas as histórias de fim de tempo, também essa traz reminiscências: “ Nos outros tempos, o velho José Paulino não parava, a gritar para todos os cantos. Montava a cavalo para ver o corte, gritava para os carreiros, para os maquinistas, mandava recados para o mestre de açúcar, para os caldeiros. Nada lhe parecia feito, tido ainda dependia de suas ordens. Comia depressa e saia para sua torre de comando, que estava em todos os lados do seu navio”.

E como os personagens de José Lins do Rego são fortes na incessante busca do passado! Na lembrança de que o bom já passou, recordando Chico Buarque no início de carreira. Um Realismo romântico. A evidência: hoje é o ruim, o pior está para acontecer. O progresso esmaga a esperança, e o refúgio é o pretérito recente, presente, como um passado atual. O neto que vai fracassar, e, num átimo, volta ao presente e pressente o início do fim: “Quando passava pela porta do meu quarto, eu sentia que com ele se ia todo o velho José Paulino. Tio Juca falhara, e os netos não davam para nada . E a morte rondava-lhe a cama de couro. Oitenta e seis anos já eram um fim de vida. Mas o via de longe, dormia a noite toda, acordava de madrugada, andava por toda a parte. Não me iludia, entretanto, com essa resistência. Um dia ou outro, cairia” (Banguê).

O que se nota é que nem toda a dignidade do coronel José Paulino consegue trazer um fio de esperança para que algo de bom aconteça no ambiente do romance. O envelhecimento do modelo econômico é o envelhecimento do patriarca. Sua morte não possui a glória dos heróis que parecem morrer felizes. Ele, uma árvore desfolhada pelo tempo, fragilizada até a raiz, pois os seus não continuam sua obra. Os herdeiros representam o fracasso. O neto, pusilânime, não consegue dominar os miseráveis que o coronel conseguira trazer sob domínio, a flor e ferro. Árvore que cai, porque a raiz está apodrecida, carcomida pelo atraso.

Carlos Melo fracassa em tudo: na profissão, no amor, no comando do engenho. Mas ele é apenas a peça de uma engrenagem já enferrujada. O rolo compressor do novo momento econômico o arrasta, como a todos. É o progresso do subdesenvolvimento, onde a máquina que facilita a produção, aumenta a desigualdade entre os homens, concentra a riqueza e faz a vida mais sofrida, principalmente para os eternos párias do campo. Melhor ser escravo de Zé Paulino, a ser expulso de suas casas pela usina. Esta a lógica da inconsciente massa de camponeses do início do século vinte. Assim, o personagem- narrador de Banguê entrança-se no emaranhado de uma teia sem fim. Labirinto de saída inexistente. Resta a fuga. O desaparecer em busca de um lugar: o esquecimento.

Em Banguê, infeliz, sempre, o destino dos personagens verticais. Todos caminhando para o vazio.

E o romance, no final, atesta, de modo poético, que todos os personagens ou “viajam” para a morte, ou fogem a lugar nenhum. A síndrome apocalíptica de uma época atinge a todos, mesmo os que se beneficiam da derrocada dos outros. Exército de infelizes: ricos e pobres.



DOUGLAS MENEZES É FORMADO EM LETRAS PELA UNICAP E EM COMUNICAÇÃO SOCIAL PELA UFPE. PROFESSOR DAS REDES OFICIAL E PARTICULAR DE PERNAMBUCO. PÓS GRADUADO EM LITERATURA BRASILEIRA, PELA FAINTIVISA E EM LEITURA, COMPREENSÃO E PRODUÇÃO DE TEXTO PELA UFPE. É MEMBRO DA ACADEMIA CABENSE DE LETRAS.

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