sexta-feira, 1 de julho de 2011

MARÍLIA



CONTO: DOUGLAS MENEZES

AGOSTO DE 1979 – PERÍODO DE CHUMBO NO BRASIL.

Você não entendeu, Marília, quando eu quis explicar o fato. Quando eu falei sorridente que iria com eles, que iria com a gente, que iria com os estudantes. Hoje, Marília, o silêncio e esse olhar fixo na lâmpada reflete o pavor sedimentado na existência vazia. E os raios elétricos emitidos tornam-se vermelhos, a cor daquele sangue que empapou a pista molhada. Não, Marília, não foi só o mau presságio, foi a tendência ao fracasso, o medo enraizado na poça de sangue. E agora tudo caótico, desintegrado, a partir do momento em que você não entendeu e sorriu zombando. Sorriu o riso que me humilhou, que me deixou mudo por minutos e minutos e que graças a ele permaneço hoje, ainda, e como! Com a cabeça fora do corpo, flutuando, misturada às imagens inquietantes. Agora, apenas o plasma preenche os espaços. O plasma e os gritos horríveis: comunistas, comunistas! O sangue e os gritos, a cabeça e o corpo, elementos cáusticos que se entrelaçam, num perfeito emolduramento plástico. E não adiantou a comparação poética que eu fiz para lhe agradar. A massa compacta igual ao seu andar, firme e altivo. Você novamente sorriu. Sorriu o riso da vergonha para mim, irônico, carga cruel. E na ironia, a palavra que rasgou-me a alma: festivos. Mas havia um motivo justo, tentei explicar, tiravam nossos direitos conquistados com muita luta e sacrifício. Não adiantou. Você não deu importância. Nós não queríamos apanhar diante do povo. Por que falou isso, Marília? Há um equívoco, tentei clarear as coisas, talvez esteja com medo. Medo eu? Aí você entendeu e exasperou-se, sentiu-se ofendida pela insinuação, o orgulho atingido. Jogou-me na cara, então, o carro emprestado, o dinheiro que dava às vezes pra comprar material, comprar tinta, cola, papel, jogou-me na cara. Já sua figura esvaia-se de mim, lentamente, inflamável que escapa da mão e desaparece. Sua voz tentou consertar: a ofensa foi sua, eu não tenho medo de nada, mas não vou ser bucha de canhão pros outros. Eu calado. Marília, você não mais minha, irremediavelmente perdida. Nós dois no silêncio sem fim. Nós dois no silêncio sem fim. Nós dois no túnel escuro, lá fora, as coisas se clareando. Iniciou-se, enfim, o último momento. Foi como um aviso: suas mãos nos meus cabelos. A gente olhou a solidão ao lado, apenas o mato do campus como testemunha. Eu olhei profundamente em seus olhos. Ao olhos incendiaram-se e houve finalmente a voz de comando: queiram ou não sairemos às ruas. É um direito nosso! Meus olhos brilharam. Conheceriam nossa força, a força dos estudantes. Quase tudo preparado. Do campus à Conde da Boa Vista, o ponto máximo na Pracinha. Todo povo saberia dos nossos problemas. Mostraríamos a força da coesão. Brilhando ainda mais meus olhos, Marília. O desejo não era fogo brando. Beijei-lhe como pude, onde pude. Você, eu sabia, já naquele momento se despedia. Fim de tarde, e sua mão se fez encantada, nervosa e leve, que percorreu meu corpo, um frio medonho sob a roupa. A massa compacta partia aos gritos. As mãos todas unidas se fizeram encantadas, seguravam faixas e cartazes, movimento brusco e leve. Milhares de cabeça, um só pensamento. Já a Caxangá. Marcha penosa, necessária, porém. A população um pouco assustada. Gritos e discursos sem fim. Alguém gritou: fala, Paulo! De momento a momento a gente parava e um companheiro lançava as imprecações. Depois a marcha era reiniciada, e a uma certo tempo: fala, Paulo, agora! Eu louco só pronunciei seu nome, completamente alucinado. Só um: Marília. Voz cortada, sufocada. O calor do corpo, o calor total. Você na entrega e na posse, nem parecia ser a última vez. Você amando, Marília, quase aos gritos, capaz de alguém ouvir. Você gritando no quase êxtase. Ei gritando, nós todos gritando no quase êxtase à entrada da Conde da Boa Vista. Partíamos para uma guerra, sem violência, esperávamos. No entanto, a proibição. Não devíamos sair às ruas, ordem expressa. Reuniões, revolta, explosão. A gente continuaria, de qualquer jeito: não estragariam nossa festa. Então, sempre pra frente, caminhando. Uma explosão, um incêndio, algo infernal. Uma loucura, as roupas voando, ganhando vida. Assim a gente ficando como nasceu, embrulhados, rolando na grama, lado a outro, barco sem rumo, já você corpo e alma abertos. Uma explosão, estouro de boiada, barco sem rumo. Perto da Sete de Setembro o batalhão de choque. Tempo não houve pra nada. Na correria, o choque, porradas de todos os lados, depredávamos coisas, numa vingança inútil. Quanto mais quebrávamos o que aparecia pela frente, mais pancadas levávamos. Então, Marília, veio a última força, o desequilíbrio final, o gemido derradeiro, de coração, sangue, nervos e ossos, tudo descompassado. Você soltou um gemido agudo. Caí para o lado, atordoado, semimorto. Você desfalecida, semimorta, o rosto de encontro à grama enxuta. Cai para um lado, repito, atordoado, semimorto, uma dor na nuca. Ao olhos embaçados, vendo os colegas apanhando. Um medo repentino, como um doido corri. Numa esquina eu vi Marcos, eu vi Marcos e o sangue e ouvi mais um tiro. Por quê? Táxi, Táxi! Ofensa terrível. Quisera estar com eles, com meus colegas, sofrer o que sofreram. Nem sequer ouvi as reclamações dos parentes, os aperreios de minha mãe. Ao olhos parados, tristes, acovardados. Não falar nunca mais, mudez só quebrada pelo barulho dos sapos. Nunca mais, Marília, ver você de olhar claro, de sorriso meigo. Nunca mais que eu me interesse por nada, porque eu fugi com medo. Fugi de você, levantei-me e saí sem olhar pra trás. Você, agora, morta pra sempre, como Marcos naquela maca, servindo de bandeira, de estímulo ao histerismo. A vista queimando, fixando-se na lâmpada acesa do quarto, relembrando cenas inquietantes. Tão moço eu, Marília, e já com duas grandes derrotas na vida.

Douglas Menezes é membro da Academia Cabense de Letras.





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